Digressões sobre o futuro da Internet e o Internet Archive

No final dos anos 1960 uma ideia audaciosa começou a surgir em meio à Guerra Fria: a criação de uma rede global de computadores. Esta rede, inicialmente conhecida como ARPANET e patrocinada pelo Departamento de Defesa dos EUA, pretendia conectar cientistas e pesquisadores para compartilhar informações e sobreviver a um ataque nuclear (I). Aquela pequena semente destinada a conectar mentes, floresceria em algo muito maior do que seus criadores originais poderiam imaginar.

No final dos anos 1980, a Internet começou a se tornar comercialmente viável. As primeiras empresas de serviços de Internet (ISPs - Internet Service Providers) abriram suas portas, e o primeiro ISP comercial discado nos EUA começou a operar em 1989. No entanto, ainda era uma tecnologia acessível apenas a poucos privilegiados. Foi só em 30 de abril de 1995, com a permissão do transporte de tráfego comercial na Internet, que a rede mundial se tornou acessível ao público em geral (II).

Em 1991, um homem chamado Tim Berners-Lee criou a World Wide Web. O que antes era uma rede de acadêmicos e cientistas transformou-se rapidamente em uma via global de informações. A Internet como a conhecemos começou a tomar forma (III).

Contudo, com o crescimento exponencial da Internet, surgiu um problema. O conteúdo da web era efêmero, desaparecendo ou mudando com frequência e não havia ninguém para catalogá-lo. Muitas das primeiras páginas da web estavam perdidas para sempre. Em 1996, um homem chamado Brewster Kahle, preocupado com o apagamento digital, criou o Internet Archive. Esta organização sem fins lucrativos se propôs a preservar e oferecer acesso a todos os tipos de conhecimento digital (IV).

Em um mundo hiperconectado o Internet Archive serve como uma biblioteca digital, preservando não apenas sites, mas também uma variedade de outras formas de mídia. Ele hospeda uma enorme coleção de livros, filmes, software, músicas e até mesmo programas de televisão que, de outra forma, poderiam desaparecer na voragem da evolução tecnológica.

Um de seus projetos mais famosos é a Wayback Machine, uma ferramenta digital que permite aos usuários 'voltar no tempo' e ver versões arquivadas de páginas da web. Com a Wayback Machine, é possível ver como os sites evoluíram e o que representavam em diferentes momentos no tempo, preservando assim um registro do desenvolvimento da Internet.

Mas a importância do Internet Archive vai além de ser um mero arquivo. Ele também desempenha um papel crucial na promoção do acesso ao conhecimento. Enfrentando a pandemia global de COVID-19, bibliotecas e escolas fecharam em todo o mundo. Neste momento de crise, o Internet Archive abriu sua "National Emergency Library", removendo os limites de empréstimo de sua vasta coleção de livros digitais. De repente, estudantes e pesquisadores de todo o mundo tiveram acesso a milhares de livros e documentos.

Pouco depois, quatro das maiores editoras do mundo processaram o Internet Archive em junho de 2020, alegando violação de direitos autorais. O julgamento, que terminou em 2023, decidiu a favor das editoras, num golpe devastador para o Internet Archive (V).

O futuro do Internet Archive e o acesso a informações digitais agora pendem na balança. Como sociedade, devemos equilibrar os direitos dos detentores de direitos autorais com a necessidade de acesso à informação? Como garantimos que o conhecimento seja preservado para as gerações futuras? Essas são perguntas que teremos de responder conforme navegamos pela fronteira digital do século XXI.

Estas questões não são fáceis de responder, e o futuro do Internet Archive está atualmente em perigo. No entanto, uma coisa é certa: o Internet Archive desempenhou, e continuará a desempenhar, um papel essencial na formação e estruturação da nossa sociedade digital, na promoção do acesso ao conhecimento e na preservação da história digital para as gerações futuras. Como tal, seu valor e importância em nossa sociedade só podem ser subestimados por nosso próprio prejuízo. 

Nesse sentido, gosto de retomar o conceito de bem comum é fundamental para entender a essência da internet e como ela tem sido governada e regulamentada. Como um bem comum digital, a internet serve como uma plataforma para o acesso à informação, a comunicação, a colaboração e a promoção de uma sociedade mais justa. Ela tem o potencial de nivelar o campo de jogo, dando a todos a oportunidade de aprender, criar e compartilhar.

Organizações como o Internet Archive são cruciais para a manutenção da internet como um bem comum digital. Ao preservar a informação e torná-la acessível, elas garantem que o conhecimento seja preservado para as gerações futuras e permaneça acessível a todos, não apenas a uma classe privilegiada.

É essencial que, como sociedade, continuemos a defender a ideia de que a internet deve ser um bem comum digital. Isso significa lutar por políticas que promovam o acesso aberto à informação, a neutralidade da rede, os direitos humanos, o desenvolvimento social, cultural e econômico e a privacidade online. Também significa apoiar organizações como o Internet Archive, que trabalham para preservar a informação digital e torná-la acessível a todos.

A internet, como um bem comum digital, é um recurso precioso que deve ser protegido e preservado. Como navegamos no futuro da era digital, devemos nos esforçar para garantir que a internet continue a ser um espaço aberto e acessível para todos.

Então, pensar em qual tipo de Internet queremos para o futuro implica em pensarmos também qual será o futuro da Internet sem o Internet Archive?


(I) https://historyofcomputercommunications.info/section/6.0/overview/

(II) https://www.nsf.gov/od/lpa/nsf50/nsfoutreach/htm/n50_z2/pages_z3/28_pg.htm

(III) https://developer.mozilla.org/en-US/docs/Glossary/World_Wide_Web

(IV) https://archive.org/about/

(V) https://www.theverge.com/2023/3/24/23655804/internet-archive-hatchette-publisher-ebook-library-lawsuit

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